Diario de Cáceres | Compromisso com a informação
Nem cloroquina nem tubaína
Por por Sérgio Cintra
25/05/2020 - 16:58

Foto: arquivo

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” (A Metamorfose – Franz Kafka – 1912). Assim começa um dos mais extraordinários contos da literatura universal: Samsa, ao despertar, vê-se metamorfoseado em enorme inseto.  A ideia é simplesmente absurda, como um mamífero viraria um gigantesco inseto? Esse ilogismo da narrativa kafkiana é prontamente aceito pelo leitor, garantindo, assim, a verossimilhança. Da mesma forma, quando Bolsonaro afirma: “Quem for de direita toma cloroquina, de esquerda toma Tubaína” há um silenciamento/ conivência enormes de boa parte daqueles que tem, de algum modo, influência sobre determinados grupos sociais.  Além disso, infelizmente, grande parte da população não enxerga o absurdo da afirmação do ocupante do Alvorada.

Só é possível conferir verossimilhança à realidade, se olharmos o Brasil segundo o conceito marxista de  alienação. Para Marx, a alienação está ligada ao trabalho;  Bolsonaro quer, a todo custo, que voltemos ao trabalho. Isso me lembra  Jorge de Lima, em “Mulher Proletária”: “Mulher proletária — única fábrica/ que o operário tem, (fabrica filhos)/ tu/ na tua superprodução de máquina humana/ forneces anjos para o Senhor Jesus,/ forneces braços para o senhor burguês.// Mulher proletária,/ o operário, teu proprietário/ há de ver, há de ver:/ a tua produção,/ a tua superprodução,/ ao contrário das máquinas burguesas/ salvar o teu proprietário”.   Aliás, um os maiores genocidas que já existiu, Stalin, dizia que a morte de uma pessoa é uma tragédia; de milhares, apenas um número. Ao ideologizar a pandemia, o presidente materializa o nonsense e ainda é ovacionado pela legião de “Os Bestializados” da República.

A Revolta da Vacina (1904), entre outros fatores, tem sua origem no autoritarismo governamental e na exclusão política. Não apenas a vacinação obrigatória e suas condicionantes (“o atestado de vacina era exigido para tudo: matrícula em escolas, emprego público, emprego doméstico, emprego nas fábricas, hospedagem em hotéis e casas de cômodos, viagem, casamento, voto etc.”) como também a impossibilidade legal do exercício da cidadania (“a constituição brasileira ‘separava’ os cidadãos brasileiros em: cidadãos ativos, que possuíam direitos civis e políticos; e cidadãos inativos, que só possuíam os direitos civis e não eram considerados aptos para opinar sobre questões políticas.”)  levaram a população excluída carioca a se levantar contra o governo de Rodrigues Alves. Os “Florianistas” contemporâneos pensam e agem como no início do século passado, impondo ao povo a cloroquina e o fim do isolamento social.

Diante dessa realidade absurda e estarrecedora, resta-nos apenas uma profunda indignação e um laivo de esperança. Em “Áporo”, Drummond filosofa: “Um inseto cava/ cava sem alarme/ perfurando a terra/ sem achar escape.// Que fazer, exausto,
em país bloqueado,/ enlace de noite/ raiz e minério?// Eis que o labirinto/ (oh razão, mistério)
presto se desata:// em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/ uma orquídea forma-se”.

 

 

(*) SÉRGIO CINTRA é professor de Linguagens e de Redação em Cuiabá.

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